Pílulas de química

Por Hélio Messeder

Imagem: internet

Me “covid” para tomar água tônica.

Estava eu preparando minha gin tônica com limão siciliano ontem pensando em qual pílula química deveria escrever.

Pensei em escrever sobre adoçantes que é uma pílula que estou devendo faz um tempo, mas eis que pula na tela do meu computador ̶u̶m̶a̶ ̶l̶i̶v̶e̶ ̶s̶e̶r̶t̶a̶n̶e̶j̶a̶ um vídeo de uma moça abrindo um freezer, numa atuação digna de um Oscar, e o diálogo acontece mais ou menos assim:

– O que você está fazendo Vitória?

Vitória responde super cheia de certeza

– Água tônica tem quinino. Quinino é a base da cloroquina. E isso aqui você pode comprar tanto no supermercado como eu to fazendo, como na conveniência da esquina. Isso aqui a Globo não te conta

Fiz a cara do picachu chocado, bebi um gole dos meus bons drinks e, assim, diante de tudo isso, tive que parar minha pesquisa em adoçantes e vir aqui falar sobre água tônica e o motivo pelo qual ela NÂO pode curar ou prevenir do coronavírus. Venha comigo pensar um pouco como a matéria se comporta pensando o caso do quinino.

Na água tônica tem mesmo uma substância chamada quinina. A quinina é extraída a partir de uma árvore chamada Cinchona. O nome da árvore se dá em homenagem a condessa de Chinchón que foi curada por indígenas do peru quando a criatura estava acometida por malária. Os padres jesuítas da missão espanhola levaram o pó da casca da árvore para Europa e começaram a vender como “pó dos jesuítas”. Aqui temos nossa primeira lição da pílula de hoje, o processo de produção de conhecimento não é neutro. Como pode o nome da árvore ser em homenagem à condessa espanhola (que foi curada) e o nome do medicamento ser “pó dos jesuítas” se quem descobriu foram os indígenas peruanos? Precisamos rever isso urgente, para que não mais aconteça e precisamos de uma reparação histórica.

Em 1820, os químicos conseguem isolar a quinina da casca. Ela foi usada como medicamento principal para cura da malária até a chegada da primeira guerra mundial. Por conta dos bloqueios econômicos, os alemães tiveram dificuldade de sintetizar o medicamento e desenvolveram o remédio chamado posteriormente de Atabrina, que dava vários efeitos colaterais,. Em 1944, os EUA sintetizaram em laboratório a quinina, mas sua síntese era difícil e cara para ser produzida em larga escala. Resgata-se então a Cloroquina, que já tinha sido sintetizada em 1930, que é mais barata e tem efeitos colaterais menos graves que a quinina além de ser segura, na dose adequada, para o tratamento de mulheres grávidas. Aqui temos o nosso outro destaque: quinina é uma substância, cloroquina é outra. Embora com efeitos curativos semelhantes para A MALÁRIA, a diferença na estrutura delas (ver figura abaixo) faz com que elas tenham comportamentos diferentes, seja no caso dos efeitos colaterais ou mesmo na sua toxicidade. Deste modo, a química nos ensina que não é porque o nome é parecido ou mesmo a formula é parecida que o efeito vai ser igual no organismo. Na química, um átomo em outro lugar faz TODA a diferença

Outra coisa que importa muito muito muito que aprendemos com a química é a concentração das substâncias. A quantidade da substância dentro de uma porção de solvente faz toda a diferença para que ela atue como veneno, remédio ou simplesmente um saborizante. É o caso da quinina! ela, em pequenas quantidades não tem efeito medicamentoso nenhum, tem apenas a função de deixar o líquido refrigerante mais amargo, eis que surge a água tônica. Só para vocês terem ideia a quantidade de quinina na água tônica é cerca de 5 mg a cada litro. O medicamento tem em torno de 1,5 g, assim quantidade de quinina presente na água tônica é insignificante, Assim a concentração também faz diferença e é por isso que você aprende o conceito de solução na escola (ou deveria aprender, rs). Desse modo, água tônica NÂO é MEDICAMENTO para nada, é só um refrigerante amargo que serve para beber puro ou fazer gin tônica,

Vejam só, meus caros leitores, estamos diante de uma tripla fakenews. A primeira é que não há confirmação de que a cloroquina é útil para curar covid-19. A segunda é que a quinina e a cloroquina teriam os mesmos efeitos. E a terceira, é a afirmação de que a água tônica teria concentração suficiente para atuar como medicamento. Esse leve 3 pague 1 é assustador. São tempos muito difíceis

É isso pessoal, qualquer hora eu volto, mas agora vou tomar minha água com limão, enquanto reafirmo que não há milagre para curar o covid-19 e o que podemos fazer agora é ficarmos em casa. Quando tudo isso acabar me “convid” para tomar uma água tônica ou uma água com gás

Compartilhem e divulguem essa pílula, já que esse texto a Globo não te conta (rs)

Referências

BOULOS, Marcos et al. Avaliação clínica do quinino para o tratamento de malária por Plasmodium falciparum. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 30, n. 3, p. 211-213, 1997.

MINIM, Valéria Paula Rodrigues et al. Água tônica: aceitação e análise tempo-intensidade do gosto amargo. Food Science and Technology, v. 29, n. 3, p. 567-570, 2009.

BARREIRO, Eliezer J.; RODRIGUES, C. R. Sobre a química dos remédios, dos fármacos e dos medicamentos. Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola, v. 3, p. 4-9, 2001.

OLIVEIRA, Alfredo Ricardo Marques de; SZCZERBOWSKI, Daiane. Quinina: 470 anos de história, controvérsias e desenvolvimento. Química Nova, v. 32, n. 7, p. 1971-1974, 2009.

CUNICO, Wilson et al. Fármacos antimalariais-história e perspectivas. Revista Brasileira de Farmácia, v. 89, n. 1, p. 49-55, 2008.

BOLZANI, Mariana da S.; BOLZANI, Vanderlan da S. Do Peru à Java: A trajetória da quinina ao longo dos séculos. 2016. Disponível em: https://i-flora.iq.ufrj.br/hist_interessantes/quinina.pdf

https://revistaforum.com.br/…/fake-news-do-momento-bol…/amp/

https://www.tvcultura.com.br/…/1336_fake-news-agua-tonica-a…

https://veja.abril.com.br/…/porque-agua-tonica-nao-funcion…/

https://piaui.folha.uol.com.br/…/quinino-agua-tonica-coron…/

https://pfarma.com.br/cor…/5350-agua-tonica-coronavirus.html

https://www.boatos.org/…/agua-tonica-cura-o-coronavirus-por…